32. EM SÃO JERÔNIMO


Encontrei em Tibagi outro cavalo, comprado por Pe. Alexandre para as necessidades das longas e penosas viagens. Daquele momento em diante foram usados sempre quatro animais: um para o padre, outro para o sacristão, um terceiro levava o necessário para as celebrações religiosas, roupas e víveres; o quarto seguia livre, solto, pronto para substituir o que se ferisse ou morresse pela estrada quando picado por cobras.

Na segunda-feira seguinte, primeiro domingo da Quaresma, Pe. Alexandre partiu em viagem de missão, rumo a leste.

Depois de 27 dias, padecendo fome e sono, com força de vontade e firmeza, salvou um sujeito que estava prestes a ter a barriga furada numa briga de caboclos. Voltou trazendo consigo a "primeira flor da selva". Um índio, um rapazinho de 14 anos, que os pais entregaram ao missionário, para que fosse instruído, alimentado e mantido. Possivelmente um futuro missionário índio.

O rapazinho, depois de alguns meses, mudou completamente. Tornou-se desenvolto, serviçal. Aprendeu a rezar e a escrever, manifestando tendências para muitas habilidades. No dia 6 de abril, duas semanas antes de receber o batismo, escreveu ao Superior Geral: "Obséquios do seu agradecido criadinho. Deus lhe dê todas as bênçãos do céu". Assinado: Quintino Kotcosain. Recebeu a fé, foi bom cristão e a graça o tornou um apóstolo!

Estávamos prontos para a semana santa, inclusive com os cânticos preparados. As matinas e vésperas foram cantadas como na Itália. O povo assistiu devotamente, com admiração. Jamais tinha ouvido tais cânticos e presenciado cerimônias semelhantes. Na quinta-feira santa foi montado um sepulcro, trabalho de Pe. Alexandre e Pe. Zanetti. Na quinta e na sexta-feira fizemos a procissão ao redor da praça de Tibagi e o povo ficou maravilhado, pois nunca tinha visto iniciativa igual. Foram feitas todas as cerimônias do Sábado Santo e do Domingo de Páscoa. Numerosas confissões e comunhões! Sábado Santo houve o lava pés de 12 velhos pobres do lugar e no Domingo de Páscoa almoçaram em nossa casa. Grande alegria e contentamento de todos! Muita curiosidade.

Por ocasião de minha última viagem, prometera em São Jerônimo que contentaria o povo, morando lá, pelo menos um ano. Pe. Alexandre consentiria se Pe. Ferrúcio fosse junto. Portanto, depois da Páscoa, preparamos tudo e partimos para o lugar. Pe. Alexandre ficou sozinho em Tibagi.

De vez em quando ele nos escrevia, triste e desolado. Isso me causava compaixão! Escreveu também ao Superior, na Itália: "Pe. Henrique e Pe. Ferrucio estão em uma outra casa, três dias à cavalo distante daqui. Não é um desmembramento, é algo provisório. Em São Jerônimo, onde há um bom núcleo de população, sente-se falta de um professor que ensine as crianças. Pediram um padre e Pe. Henrique se ofereceu por um ano. Pe. Ferrúcio o acompanhou, dizendo-se muito disposto para dar aula no primeiro mês.

Também Ir. Domingos foi com eles, para ajudá-los e conhecer um pouco da vida do mato, como dizia. Voltou maravilhado e com a cabeça cheia dos encantos naturais, de caboclos, de índios bêbados e sãos, de animais e de cobras. Os dois padres me escrevem a cada 15 dias. Pe. Henrique está sempre alegre, apesar da vida magra que leva. No dia de Pentecostes escreveu-me que no almoço houve arroz e feijão, e no jantar feijão e arroz. Pe. Ferrucio foi assaltado por bichos de pé, e terá que sofrer por algum tempo. Esperamos nos reunir dentro de alguns dias com o auxílio de Deus, na inauguração de uma nova capela em Lageado Liso a 5 léguas de são Jerônimo".

Vivíamos em uma casa de madeira, sem vidraça na janela, sem água, sem luz, e atormentados dia e noite por uma dúzia de cabras, que vinham berrar e dormir debaixo do assoalho. Era delas o dormitório havia muito tempo e não se conseguia despejá-las. Tínhamos uma capelinha de madeira, onde o pessoal se reunia todas as tardes para o terço, e no domingo para a santa Missa.

Durante os dias da semana lecionava-se para uma dúzia e meia de meninos, e à tarde dava-se catecismo também para as meninas, na capela. Preparávamos a nossa comida e às vezes a recebíamos pronta e fumegante. Fazíamos alternadamente viagens de Missão pela margem esquerda do Tibagi. Pe. Alexandre reservara para si a margem direita. As condições no lugar não eram cômodas, mas dava para se viver.

O demônio nos criou outro problema! Pe. Ferrúcio pegou bicho-de-pé. Por descuido sofreu cinco meses. O danado do bicho é um animalzinho microscópico. Os porcos e as cabras o semeiam pelos trilhos no meio do mato. Os que passam são atacados sem perceber. Com o passar do tempo aparece uma bolinha amarela cravada debaixo das unhas ou entre as dobras dos dedos. A coceira fica insuportável! Mais um dia e a bolinha se transforma numa ninhada de bichinhos. Ai, ai... se houver demora em tirá-la! Eles se propagam rapidamente e infestam os pés ou as mãos.

Pe. Ferrucio ignorou a seriedade do caso. Não quis ouvir conselhos. Agüentou dias e noites, até que foi para a cama. Foi obrigado a usar muletas para ir até a igreja a fim de rezar missa e imediatamente voltava para a cama. Extraí os numerosos vermezinhos que fervilhavam sob o polegar do pé e o desinfetava todos os dias. Ele sofria com as dores, e eu com o tratamento.

Nos dias de sol, levantava-se e sentava-se sobre um tronco diante da porta da casa. Nossos dois cachorros vinham e lambiam-lhes as chagas. Caro são Lázaro, onde estás? Por cinco meses ficou quase imobilizado, atormentado pelas dores, com os pés enfaixados e cobertos de chagas! Eu o socorria sozinho com os curativos. Ao mesmo tempo organizava as viagens!

Fui a Lageado Liso para a inauguração da nova capela e passei um dia feliz com o Pe. Alexandre. Pe. Ferrúcio não pôde ir. Fui também a Tibagi ajudar Pe. Alexandre. Pe. Ferrúcio não pôde sair de casa!

Pe. Alexandre escreveu ao Pe. Superior naquela ocasião: "Pe. Henrique veio a Tibagi ajudar-me por alguns dias, na festa do Sagrado Coração e na primeira comunhão de algumas crianças. Envio uma fotografia dos neo-comungantes, na qual estão representadas três raças: duas meninas negras, um índio e os brancos. Também aqui se fazem festas com luxo! Deus conserve nestas pobres crianças o fervor, pois o ambiente em que vivem procurará apagá-lo. A festa foi bonita, porque coisa rara, um bom número de adultos compareceu à Missa. Naquele dia a voz de tenor do Pe. Henrique ressoou no "Laudate pueri", de Cappocci, acompanhada por um coro de meninos – e é preciso dizer - foi espetacular. Logo depois Pe. Henrique voltou a são Jerônimo para ficar com Pe. Ferrúcio que não se curara de suas feridas"

Somente aos 6 de janeiro de 1914, Pe. Ferrúcio escrevia para “Il Bertoniano”: “Estou completamente curado do terrível mal, que me
atormentou por cinco meses!"

Estávamos havia onze meses em são Jerônimo e nos preparávamos para voltar a Tibagi para a convivência com Pe. Alexandre. Bonifácio nos veio buscar. Foram três dias terríveis de viagem. Tínhamos muita coisa para levar e tudo sobre lombo de animal. Após caminhar um dia inteiro, encontramo-nos no meio de uma floresta densa e muito escura. Caiu a noite e não se pôde prosseguir.

Paramos. Descarregamos os animais, penduramos um cincerro em seus pescoços e os deixamos: certamente não desapareceriam! Com o facão cortamos algumas varas e montamos a nossa tenda comprada em Curitiba num armazém de objetos militares usados. Abrimos nossas duas macas. E Bonifácio? Dormiu sobre os pelegos estendidos em cima dos baixeiros, no chão. Acendemos uma fogueira de lenha e capim verde para manter afastados os tigres e pernilongos; depois comemos um pouco e tomamos água do regato vizinho. Colocados os fuzis, os revólveres e o facão ao lado da própria maca, demos um beijão no crucifíxo que pendia do peito, e boa noite! Durante uns instantes ouvi a conversa do Pe. Ferrúcio com Bonifácio, mas logo fiquei com os anjos, e por muitas horas.

Pouco depois da meia-noite, acordei com um grito de Pe. Ferrúcio perguntando a mim e a Bonifácio:
- Que urro é esse?
Eu também ouvi e foi por várias vezes!
- Meu caro, respondi, é o nosso amigo tigre! Talvez tenha fome, coitadinho.
E o urro se repetiu.
- Não tenha medo, Pe. Ferrúcio. Ele não virá até aqui.

Levantei-me para remexer os tições que queimavam e faziam muita fumaça. Voltei para a maca, tentando dormir. Pe. Ferrucio não permitiu. Sua conversa e suas perguntas não paravam. Estava aterrorizado com medo do tigre!
Certo momento disse:
- Escuta, Pe. Ferrúcio, rezarei um terço por sua alma se você for ao riacho, aqui perto, buscar água, pois estou com sede.
- Pode rezar 10 terços e também a Missa. Daqui não saio.
Rimos gostosamente.

Fui buscar água, bebemos e comemos um pouco, pois não havia mais como dormir! Assim chegou a madrugada e nos preparamos para continuar a viagem. Ao terceiro dia estávamos em Tibagi e festejamos o encontro com um almoço à base de cateto.

Poucos dias antes houvera uma boa caçada de catetos, por três ou quatro caçadores tibagianos. Como era costume, venderam a carne que é ótima para comer. Pe. Alexandre pensou que um bom prato daquela carne seria motivo de grande alegria para nós que estávamos para chegar. E pensou bem, pois estávamos famintos! Ah! Pe. Alexandre é do tipo que sabe prever!

Pe. Ferrúcio se encarregou de registrar e transcrever no livro próprio todos os batizados e casamentos; ficou ocupadíssimo, pois não eram poucos e aumentavam a cada viagem. Parecia satisfeito com o sertão, ao menos naquele momento. Preferia, porém permanecer em casa e tomar conta da igreja de Tibagi.