36. LIMEIRA


No dia 28 de junho de 1914 parti de Tibagi com Pe. Pelanda para a nova fundação no Estado de São Paulo. Estabelecemo-nos como primeiro passo, em Limeira, conforme me entendera com o bispo D. João Neri, de Campinas.

Chegamos à cidade. Ninguém nos esperava embora Pe. Pelanda tivesse acenado sobre banda, povo, discursos a fazer. Fomos até a casa do vigário e logo em seguida à igreja da Boa Morte. Somente o presidente da Confraria homônima veio nos ver para nos instalar nas tribunas da igreja.

Começamos imediatamente a fazer divisões com tábuas para conseguir dois quartinhos. Tínhamos somente uma cama, uma cadeira, uma mesinha e uma bacia para cada um. Nem cozinha, nem banheiro, nem luz elétrica no local. Eu era o capelão da Boa Morte com cinqüenta mil réis de ordenado. Igualmente era o capelão do pequeno Hospital e das Irmãs Franciscanas que o dirigiam. Além disso, era o coadjutor da igreja matriz e vigário da vizinha cidade de Cordeiro(1). Tudo para poder viver e comprar o necessário.

Pe. Pelanda, que chegou ao Brasil com papéis que indicavam sua destinação para Limeira, não sabia três palavras de português e se limitava a celebrar a santa Missa, durante a qual, aos domingos, pregava o Evangelho em italiano. Era óbvio que os brasileiros nada entendiam. Eu corria de um lado para outro, como um louco, para dar conta de todas as minhas obrigações.

A comida, no início vinha das Irmãs do Hospital, mas tão miserável e insossa, que depois de algumas semanas decidimos dispensá-la. Pensamos em fazê-la nós mesmos. Aí começou minha vida de cozinheiro, que não desejo a ninguém deste mundo. Comprei um fogãozinho a carvão. Era leve, pequeno e incômodo. Após a santa Missa, subia à tribuna e acendia o fogo para o café. Coloquei o fogãozinho em uma das duas torres que ficavam ao lado da fachada, a fim de que a fumaça não invadisse a igreja. Começava a soprar os carvões acesos e, depois de uma hora, podia ter um pouco de água quente. Que paciência! Que penitência! Ao recordar tais cenas eu mesmo fico maravilhado.

Pe. Pelanda, filho de comendador, não gostava de sujar as mãos e o rosto. Tinha, porém, a paciência de esperar o café. Quando o mísero café tinha sido tomado já era hora de preparar o almoço e soprar os carvões de novo. Não havia perigo de eu fazer almoços dignos de Lúculo. Quando me saía bem, conseguia preparar um pouco de espaguete e dois ovos, ou um pedacinho de carne que fosse tenra e mole, e nada mais. Plantei verdura e pés de tomate em caixinhas, que levei à torre e enchi de terra. Depois do almoço lavava os pratos, e em seguida começava a preparar a janta que era ainda mais reduzida que o almoço. Depois de lavar os pratos já estava na hora de ir para a cama. Imaginem então o que acontecia no domingo quando, depois de uma missa celebrada na Matriz, devia correr para a segunda em Cordeiro!

Normalmente ia a Cordeiro sábado à tarde, voltava domingo de manhã a Limeira e, depois da primeira missa, corria a Cordeiro para a segunda. Ou então imaginem os dias em que eu devia permanecer na matriz até mais tarde, ou para confissões ou para batizados, ou chamado ao hospital para um doente, ou pior ainda, para um doente fora da cidade! Então, fazia o café mais depressa ou o dispensava. Isso acontecia com o almoço também. Assim por longos, longuíssimos meses!

Não me lembro de que alguém jamais nos desse um pouco de comida de qualquer espécie ou qualidade! É melhor que não relate ao leitor o que acontecia pelo fato de não termos um banheiro! O único pensamento que nos sustentava era o de que, em certo momento, o Senhor nos premiasse com qualquer outro lugarzinho para a nossa fundação!

Os dias eram sempre curtos para mim; curtíssimos quando, entre o serviço da igreja, a limpeza da tribuna e a cozinha, devia ainda atender o expediente da paróquia, preparar papéis e certificados para substituir o vigário que ia ao Bijou para rinhas.

Ele tinha cerca de noventa galos, cada qual separado do outro em pequenas gaiolas vizinhas. O sacristão era o encarregado dos animais, que consumiam quintais de grãos por semana. Um galo veio do Japão: era o mais famoso e o que vencia sempre; outro veio da Índia; um terceiro da Terra do Fogo. Galos famosos! Conhecidos em grande parte do estado de São Paulo.

A tarde era a hora das lutas. Então chegava o fazendeiro, trazendo seus galos de briga: enxutos, delgados, com pescoço comprido e longos esporões nas pernas. Antes já tinham feito a aposta com outro senhor, também dono de galos, ou com o vigário do lugar. O sacristão com um par de galos bravos debaixo do braço, acompanhava o vigário até o Clube. Apenas colocados no chão, os galos começavam a bicar-se, unhar-se com os esporões, que às vezes, eram revestidos com pontas de aço. Terminava a luta somente quando um dos contendores tinha prostrado o outro, que cambaleava sangrando por todos os lados, especialmente na cabeça.

Então o vencedor soltava um quiquiriquiqui anunciando a todos que havia vencido! E dezenas e centenas de notas de mil réis passavam pelas mãos dos jogadores. Os vencedores as metiam no bolso, satisfeitos!

Chegou o dia em que a Itália entrou em guerra. Muitos filhos de italianos partiram para combater na Itália. Nós tínhamos ordem de calar a boca; como missionários não seríamos declarados nem insubmissos, nem desertores. Pe. Pelanda, no entanto, como bom italiano, assim se denominava, quis cumprir o dever cívico. Desejava voltar à Itália, para a guerra, dizendo a todos, especialmente às meninas das Irmãs do Orfanato do Ipiranga, que seria maravilhoso morrer "com a espada na mão e a fé no peito!" Ó Infeliz! Na verdade, estava com saudades da Itália e aproveitaria de um pretexto para revê-la. Contudo, apenas se apresentou, o mandaram de volta! E houve quem riu. E muito!

Pe. Ferrúcio substituiu-o em Limeira e eu me senti aliviado. De Limeira, e especialmente de Cordeiro, minha paróquia, ia freqüentemente a Rio Claro, bela cidade de 20-22 mil habitantes para visitar o Cônego honorário Francisco Botti, vigário, e seu coadjutor Pe. Mário Abbondanza. Algumas vezes o Cônego chamava um ou outro de nós, durante a semana, ou para atividade religiosa ou para ter companhia. Por isso, conhecíamos muito bem Rio Claro e seus padres. Éramos conhecidos e estimados. Muitas vezes eu sonhava: "Se pudéssemos nos estabelecer em Rio Claro!" E embalava continuamente a idéia.

Um dia dois padres Passionistas, Pe. Basílio e Pe. Camilo, vieram nos visitar, na tribuna. Desdobrei-me para poder tratá-los o menos mal possível. Enquanto Pe. Ferrúcio os entretinha na conversa, eu soprava o forno a fim de preparar um cafezinho. Ficaram assombrados com a nossa vida pelo local onde vivíamos e pela coragem que tínhamos. Partiram profetizando que o Senhor haveria de premiar nosso zelo e nos daria um lugar mais digno.

A igreja era muito freqüentada e havia muitas as confissões e comunhões mesmo nos dias de semana. Depois da chegada de Pe. Ferrúcio, que sabia português, nossa condição de vida melhorou tanto para mim como para os membros da Sociedade da Boa Morte, que ficaram contentes e satisfeitos. Em agosto fizemos a Festa de Nossa Senhora com novena e pregações. Preparação esplêndida na igreja e belíssima a procissão à noite. O povo rezava e muitos, tendo recebido alguma graça de Nossa Senhora, acompanhavam a santa, descalços, com uma ou duas imagens na cabeça!


Em setembro, Pe. Ferrúcio voltou para Tibagi e Pe. Alexandre o substituiu em Limeira. Certo dia, após observar o movimento na igreja, meu corre-corre, a vida que levava havia sete meses para preparar um pouco de comida, o buraco onde vivíamos, chamou-me e disse:
- O que estamos fazendo aqui, meu amigo? Aqui jamais será uma fundação nossa! Rio Claro, veja, Rio Claro, é um bom lugar! Lá vale a pena.
- Muito bem, respondi, este é o meu pensamento e foi sempre minha idéia, desde que aceitei Limeira. Limeira não por Limeira, mas Limeira como trampolim para um lugar melhor. Se quiser, vou falar com o vigário de Rio Claro!
- Você o conhece?
- Certamente, e muito bem! Quantas vezes nos vimos e almoçamos juntos!
- Muito bem, aproveita, vai e combina qualquer coisa, porque aqui em Limeira somos inúteis.

Dito e feito. No dia seguinte fui a Rio C1aro. Quando bati à porta o vigário e Pe. Mário estavam à mesa para o almoço. Tomei a bênção do Cônego Botti, cumprimentei Pe. Mário, que me disse:
- Oh! caro Padre! Como vai? De minha parte, estou bem, mas cansado, muito cansado!
- Quer um ajudante?
- E os dois exclamaram:
- Oxalá!
- Muito bem, eu disse ao Cônego Botti, estou aqui para saber se veriam com bons olhos a nossa vinda para Rio Claro.
- Que bom, filho. Queira Deus. Para nós será um grande prazer!
- Pe. Alexandre encontra-se em Limeira. Pensamos que em Rio Claro teríamos mais trabalho e poderíamos fazer grande bem! Especialmente porque é certo que virão outros padres da Itália!
- Venham! Venham! E trabalharemos juntos, pois aqui há trabalho para todos. Poderão oficiar na igreja de Santa Cruz, lá no alto, ajudar-me na matriz e sair para os bairros.
- Ótimo! Direi tudo a Pe. Alexandre e amanhã ele estará aqui.

Voltei contentíssimo para Limeira e imediatamente pus Pe. Alexandre a par de minha conversa em Rio Claro. No dia seguinte ele foi e voltou, tendo combinado tudo com o vigário, Cônego Botti. Moraríamos provisoriamente numa casinha perto da igreja de Santa Cruz, da qual cuidaríamos. A igreja estava sobre uma colina, um quilômetro e meio de distância da igreja matriz. Um de nós ajudaria, como coadjutor na igreja paroquial, e o outro ficaria lá em cima. Estaríamos juntos depois da janta. Cuidaríamos da Santa Casa, do Asilo dos Velhos de São Vicente e do Colégio das Irmãs do Puríssimo Coração de Maria. De vez em quando, se faria uma visita aos bairros, que eram numerosos e espalhados pela zona rural.

Existiam muitos italianos, e havia a esperança de uma boa fundação. Mais tarde, se poderia também erguer um Colégio ou Escola Apostólica, formar os nossos estudantes e novos missionários estigmatinos.

Ninguém em Limeira sabia nada. A decisão ficou em segredo e paulatinamente começamos a preparar nossas malas e caixas. Tínhamos pouca coisa para levar. Visitamos algumas vezes a casinha de Rio Claro, nossa futura moradia. Pe. Alexandre deu algumas orientações para pintura e reforma. Cônego Botti fez questão de arcar com as despesas.

Estava tudo pronto: notificamos o presidente da Confraria da Boa Morte, que não se abalou, pois já havia percebido que a nossa vida era muito penosa em Limeira. Combinamos a mudança. No dia 5 de outubro de 1915 carregamos todas os nossos pertences e partimos para Rio Claro, onde chegamos às quatro horas do mesmo dia, 5 de outubro de 1915.

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(1) Atualmente (2009) é Cordeirópolis, cidade distante quinze quilômetros de Limeira. Segundo tradição popular o nome Cordeiro teria advindo do costume de se dizer “vamos ao cordeiro”. Na região havia um artesão que trabalhava com cordas e era chamado de “cordeiro”; era referência toponímica para as pessoas.