19. MINHA PRIMEIRA VIAGEM - I


O título da Crônica de Pe. Adami “MINHA PRIMEIRA VIAGEM” foi dividido em seis partes:
a) três (números 19, 20, 21) são dedicados às atividades apostólicas;
b) três (números 22, 23, 24) referem-se a curiosidades e estórias da viagem.

Bonifácio preparara tudo. Estávamos prontos. Abraços, a santa bênção e o adeus por um mês ou mais. Pe. Alexandre viajara para a parte oriental e eu iria para a ocidental, Atravessamos o Tibagi com a balsa e nos dirigimos à fazenda Fortaleza. Um mato muito denso a esconde de quem passava por ali.

O mato era famoso por suas onças. No tempo do Império, em Fortaleza havia um destacamento de soldados; daí a razão do nome Fortaleza. Transposto o mato deparava-se com um campo interminável onde era muito fácil perder-se o trilho.

FAZENDA FORTALEZA

Paramos em Fortaleza, 18 quilômetros de Tabagi. Fomos recebidos pelo fazendeiro que nos tratou muito bem. À tarde rezamos o terço com o grupo de pessoas ali reunidas; atendi algumas confissões e disse algumas palavras.

O fazendeiro me mostrou uma bela estátua do Bom Jesus a quem é consagrada a fazenda. A maior parte dos animais que vivem na fazenda, mulas, cavalos, vacas, têm a marca BJ, pois eram doadas por graças recebidas. Não quis logo no primeiro encontro perguntar o que se fazia com o dinheiro recebido pela venda dos animais do BJ. Mais tarde Pe. Alexandre se interessaria.

De manhã, o povo do lugar compareceu na hora certa. Celebrei a missa e distribuí a santa comunhão aos que se confessaram na tarde anterior.
Terminada a missa fiz uma pequena pregação animando os cristãos a perseverar e batizei cinco crianças.

FAZENDA MONTE ALEGRE

Após breve refeição, partimos rumo a Monte Alegre.

Entramos logo nos intermináveis campos. Ao meio dia descansamos um pouco debaixo de uma das poucas árvores que se encontravam.
Almoçamos e uma hora depois, montamos a cavalo e seguimos pela planura sempre contínua, debaixo de sol ardente.

Após algumas horas de viagem chegamos à Fazenda Monte Alegre. Era uma fazenda enorme, talvez a maior de nossa missão; tinha 48 quilômetros de comprimento e 32 de largura. Três quartos dela era uma floresta densa, escura, com grandes árvores de toda espécie. A floresta de Monte Alegre era famosa por suas onças e porcos do mato.

O dono da Fazenda vivia em São Paulo. Aqui encontrei somente o capataz, que lhe fazia as vezes, e uma dúzia de homens que com ele mantinham a Fazenda. Boa comida, ótima conversa. O capataz e seus homens eram pouco religiosos, mas avisaram o povo como puderam. Viriam no dia seguinte para a santa missa. Seriam poucos, porque a fazenda era muito grande com reduzido número de colonos. De manhã reuni-me com cerca de vinte pessoas. Vieram de muito longe a cavalo e tinham pressa de voltar.

Fiz o máximo para agradá-los. A missa na hora certa e um sermão curto. Não me recordo de que tenha havido confissão, comunhão ou batizado. Este, porém, era um lugar onde o missionário deveria passar muitas vezes durante o ano por ser rota das viagens. Portanto, todos teriam a oportunidade de fazer sua confissão e comungar ao menos uma vez ou mais. Viviam sempre entre os animais e cuidando deles, longe da igreja e do sacerdote. Ainda bem que continuavam católicos.

Bonifácio disse-me que se até agora não tivera encontrado grande trabalho, o encontraria até cansar em Caeté, nossa próxima parada. Eu estava ansioso para chegar lá.

CAETÉ

Partimos imediatamente após os trabalhos em Monte Alegre.

A estrada não passava de um trilho apenas visível e continuava sempre no meio dos campos. Um ou outro pequeno bosque quebrava a monotonia do panorama! Algumas perdizes desgarradas levantavam vôo e iam para longe. De repente surgiram de um bosque dois catetos, que grunhindo, fugiram espavoridos.

Encontramos um cavaleiro vindo em sentido contrário. Bonifácio o conhecia. Apresentou-me a ele que me apertou a mão. Depois perguntou:
- Como vai, Padre? Que tal estas viagens? É um bom remédio para apagar os pecados da vida!
Era um bom cristão; ia a Tibagi a negócios no município. Aproveitei para mandar lembranças e saudações a Pe. Alexandre.

Prosseguimos, e eu ia pensando no "remédio para apagar os pecados da vida!" Era verdade! Por melhor que se soubesse cavalgar, quando as viagens eram longas e continuadas, cansava pra valer. No inverno, embora aqui não se pudesse pensar em frio como o da Itália os pés ficavam amortecidos. Era preciso desmontar e caminhar um bocado. No verão, o calor de 40 graus centígrados queimava, atordoava e provocava sono. Parecia um forno queimando nos quatro lados. Se fosse dia de chuva, a temperatura refrescava. Mas colocado o "poncho" ou o "pala", que se encharcava sentia-se o peso de chumbo. Finda a chuva o calor aumentava sentindo-se o cheiro de vapor e de erva fermentada. Os mosquitos e os mutucas faziam sangrar cavalo e cavaleiro. Desta forma as viagens tornavam-se um meio bom para apagar os pecados da vida! Só o auxílio de Deus e o desejo de salvar almas davam forças para superar todo o sofrimento.

Passamos o riacho Santa Rosa por uma ponte rangente feita de toras mal arrumadas e avistamos Caeté. Era uma bela vila, composta de uma centena de casas; tinha uma linda igrejinha e várias vendas bem abastecidas. Vi também algumas casas de dois andares feitas de tijolos. O chefe do lugar, José de Macedo, nos recebeu com o semblante feliz. Mandou tirar as selas dos animais, levou-nos para sua casa e colocou à nossa disposição dois bons quartos.

Percebi um cheiro bom de feijão, prato preferido do povo! Na janta amassei-o juntando com arroz, misturei um bocado de carne e um pouco de fritada feita com ponta de palmito. Tomei ânimo. Estava com grande apetite, pois desde que saímos de Monte Alegre tínhamos comido somente um pouco de farinha. José Macedo nos ofereceu também um copo de cerveja! Quem teria imaginado! Cerveja naquele lugar!

Depois da janta, durante a conversa, perguntei a respeito dos cristãos, dos batizados, se haveria casamento. Os cristãos residentes no lugarejo eram mais ou menos trezentos. Outros viriam de longe, pois José avisara a todos sobre a presença do missionário. Estavam marcados 12 batizados do lugar; certamente chegariam a um número maior.

Percebi barulho de vozes e risadas numa casa vizinha. Era uma viola que acompanhava dois cantores. Perguntei e me responderam que era gente vinda de longe para a festa do dia seguinte. Às 20 horas fui para igrejinha com um pedaço de ferro que serviu de sino. Dei o sinal da “reza” e logo depois a igrejinha ficou quase repleta. A maioria rezou bem o terço. Cantei a ladainha deixando ao povo o “ora pro nobis”. Depois um breve sermão, mas bem feito, exortando todos a aproveitar da presença do missionário para a confissão e comunhão. Em resumo, às 23 e trinta horas ainda estava ouvindo confissões; ouvi muitas no dia seguinte.

A santa Missa foi celebrada às 10 horas. Um pouco tarde, mas eu esperei por pessoas que ainda chegariam de longe. Aconselhei a que resistissem à tentação e ficassem em jejum para a comunhão. Obedeceram. Sete casamentos foram celebrados durante a missa e 4 depois do meio dia. O missionário recebia a faculdade de dispensar dos proclamas; fazia somente um no ato do casamento. Apresentaram-se os noivos com duas ou quatro testemunhas.

O padre paramentado fazia a tradicional pergunta:
- Se alguém souber de qualquer impedimento que possa existir entre os noivos, é obrigado a declará-lo debaixo da pena de pecado mortal. As testemunhas respondiam sempre, sempre mesmo, quando existia realmente algum impedimento: "Não consta, não consta". E o sacerdote prosseguia com a administração do sacramento.

Nem sempre as testemunhas eram honestas e conscienciosas! O chefe do lugar sempre avisava o padre a tempo, e então ele saberia como agir. Mas nem sempre isso acontecia. Havia casos em que era enganado. Muitas vezes descobria-se o engano mais tarde. Se fosse possível remediava-se, Nem sempre era possível, e então se recorria ao bispo. Na missão o missionário era quase como bispo! Tinha faculdades especiais: podia dispensar dos impedimentos de consangüinidade até o segundo grau, dos proclamas, dos impedimentos de afinidade.

Era necessário que assim fosse. Imaginem as distâncias, sem um correio confiável! Tratava-se de pessoas que talvez se pudessem ver dentro de um ano. E talvez, não! Como se poderia, cada vez, recorrer à autoridade eclesiástica? O bispo tinha o poder de conceder estas faculdades ao missionário; o bom senso do missionário era o critério.

Durante a santa Missa distribui a comunhão a muita gente. Fiz um breve sermão e quase ao meio dia cheguei ao fim. José de Macedo veio buscar-me para o almoço. Pedi desculpas e prometi que logo voltaria para os batizados. Depois de meia hora voltei à igreja para os batizados. Recebi e anotei primeiramente, os nomes dos batizandos e dos padrinhos. Deram a oferta antecipadamente, porque este era o costume. Eram 48! Coloquei-os em dois semi-círculos, benzi a água, preparei tudo. Bonifácio com a toalha e o sal na mão estava pronto e me aguardava.

Dei início à celebração. Daí a pouco, começou a sinfonia! Gritos e choros variados! Principalmente na hora de se colocar o sal na boca das crianças! Recordo-me de que um dos maiores me cuspiu na cara! Os padrinhos, as madrinhas e os pais ficavam contentes e satisfeitos por causa da choradeira: criam que se a criança chorasse durante o batizado teria uma vida longa. Contaram-me que em alguns casos, quando o pequenino não chorava, o padrinho lhe dava beliscões para obter resultado. Gastei quase duas horas e os 48 gurizinhos se tornaram cristãos, filhos de Deus!

Ouvi fora, disparos, gritos e grande barulho. Corri para a porta e vi chegar uma multidão de pessoas em direção da igreja. Eram noivos que chegavam para o casamento.

Estava tudo pronto. Os quatro noivos e noivas comungaram e foram colocados em ordem diante do altar. Iniciei com as perguntas do ritual. Os dois primeiros eram espertos e pareciam inteligentes, respondendo rapida e corretamente. Os outros se comportaram bem. Após a cerimônia, todos de novo a cavalo, dispararam como o vento, gritando alegremente.

Para a festa haviam preparado leitoas, perus, galinhas, pinga e toda espécie de doces em quantidade suficiente para dois dias. O baile durou a noite toda. De manhã com os olhos quase fechados, cambaleando, voltaram para casa.

Aguardei um tempo para administrar o batismo. Às cinco horas da tarde voltei para casa de José, onde Bonifácio e eu descansamos. Jantamos e fiquei pronto para a reza da noite.

Não eram muitas as pessoas presentes. Aquelas que vieram na tarde antecedente para os batizados ou casamentos tinham ido embora. Porém contei mais de 70 pessoas. Depois do terço fiz um sermão bem simples, explicando os pontos mais importantes e básicos do catecismo. Benzi muitos objetos religiosos e me entretive com eles bom tempo. Assim eles puderam conhecer-me, e eu ter uma idéia deles. Encontrei muitas pessoas fervorosas e as convidei para a santa missa do dia seguinte. Voltei para casa.

Para dizer a verdade precisava muito de repouso. Deitei-me tarde e dormi sem me mover na cama até a manhã seguinte. Um sono só.

Às 8, estava pronto para a santa missa e tudo mais que fosse preciso. Celebrei e distribui a comunhão a algumas pessoas. Batizados e casamentos não apareceram. Depois do café visitei algumas pessoas, e numa venda comprei um respeitável facão.