39. CONSOLIDAÇÃO DA MISSÃO


Quando estava em Rio Claro, nas idas semanais à paróquia de Cordeiro, cidadezinha próxima, fiz amizade com o Vigário de Cascalho, Pe. Luiz Stefanello, um dos Missionários Escalabrinianos. Ao ir a Rio Claro para levar a primeira oferta de dinheiro para ajudar a construir o futuro colégio, fui visitar o caro padre e o convidei para visitar Tibagi. Ele desejava muito conhecer nossa Missão e como se faziam as longas viagens.

Aceitou e na volta o levei comigo. Cansou-se muito pela longa viagem de trem, mas muito mais nos noventa quilômetros a cavalo de Castro a Tibagi. Saímos para caçar várias vezes e ele gostou muito, pois era louco por caça. Tendo que fazer uma viagem de Missão, ele quis vir comigo e o contentei. Viajamos vinte e cinco dias. Teve que se conformar muitas vezes em dormir no chão duro sobre pelegos, comer a comida dos caboclos e suportar a sela ingrata, que lhe causou uma pequena ferida.

Em Imbauzinho, enquanto eu fazia alguns batizados, ele saiu para a mata com a espingarda e foi feliz matando um veado. Ouvi gritos de alegria e voz que me chamava. Saí depressa e vi Pe. Stefanello que chegava com um veado às costas. Recebeu parabéns de todos e quis levar a pele para Cascalho como lembrança da façanha. Visitamos também um acampamento de índios e Pe. Stefanello recebeu os abraços de compadres muito alegres e quase bêbados. Um deles, que estava mais bêbado do que os outros, dava-lhe uns empurrões, dizia:
- Pandere, eu quero brigar com você.

O padre procurava esquivar-se, mas o índio prosseguia estupidamente. Chegou o cacique, o índio Boaventura. Viu e procurou dissuadir seu comandado, mas ele continuava cada vez pior. Então Boaventura disse:
- Não se importe, Pandere, ele se acalmará.

Chamou dois índios valentes e fiéis. O bêbado jogou-se por terra, mas foi inútil. Os dois o pegaram, levaram-no para fora e ataram-lhe as pernas em dois buracos feitos num tronco, onde elas apenas cabiam, pondo-lhe em cima um pedaço de tábua, que amarraram com uma corda.

Foi um suplício terrível, pois a tábua amassava a perna, tanto quanto fosse apertada a corda. Protestamos e não queríamos que lhe fosse dado tal castigo. Mas, o cacique foi inexorável e ainda colocou dois índios como guardas para que ninguém o soltasse. Só depois de quase uma hora, tendo dito que iríamos embora se não o soltasse, o cacique deu ordem de libertá-lo. O torturado sentou-se quietinho num banco. O cacique disse a Pe. Luiz Stefanello:
- Vê, Pandere, ele se acalmou.

Pe. Luiz teve que passar rios a vau, subir e descer montanhas com terreno úmido, em que a mula escorregava e descia quase sentada por terra. Chegamos uma tarde numa casa quase caindo. Era necessário passar a noite lá dentro. A choupana tinha um cômodo só, comprido, cheio de espigas de milho no meio. O milho nos separava dos membros da família, os pais e três filhos. Depois de um feijão com farinha de mandioca, estendemos o couro do baixeiro no chão e colocamos os três pelegos em cima. As selas serviram de travesseiro. Aquilo foi cama para mim, para Pe. Luiz e para Bonifácio, todos juntos. Até tarde da noite nenhum dos três dormiu. Era uma risada só. Poucas horas depois levantou um temporal com relâmpagos e trovões. Caiu um aguaceiro de meter medo. Chovia mais dentro do casebre do que fora. Cada um procurou se abrigar como pôde. Fui terminar dentro de um grande jacá que servia para transportar as espigas da roça para a casa.

No dia seguinte, dentro da casa, havia água e lamaçal. Eu celebrei a missa debaixo do couro do baixeiro colocado sob o teto. Depois de um feijão matutino, fomos embora. De volta a Tibagi, Pe. Luiz tinha mais do que o suficiente para contar. Em Cascalho, pregando aos italianos dizia:
- Caríssimos, vi coisas que vocês não podem imaginar! Não têm a idéia do que sofrem os missionários! Desta vez eu mesmo fui testemunha. Se aqueles padres não forem para o céu, não sei quem irá consegui-lo!

Em Rio Claro os confrades recém-chegados, vencendo aos poucos a dificuldade da língua, ajudados pelo Vigário Cônego Botti, pela Associação do Carmo e pela Prefeitura, pensaram em garantir a fundação. Conseguiram que a Associação do Carmo cedesse, por meio do bispo, todo seu direito sobre a igreja e o terreno. O novo bispo de Campinas, Dom Francisco de Campos Barreto, com contrato de 14 de maio de 1921 cedia à nossa Congregação a igreja, o terreno anexo e tudo o que possuía a Associação de Nossa Senhora do Carmo. Estávamos sujeitos unicamente ao bispo.

Por sua vez a Câmara Municipal concedia que se tomasse posse também de terrenos a serem doados à Associação do Carmo e ao Pe. Alexandre para a construção de um Instituto em prol da juventude. Em seguida, tais terrenos, mediante permuta com outro que eu comprara de um órfão do Instituto do Pe. Faustino Consoni, passaram a ser propriedade nossa.

No dia 18 de julho de 1921, com o navio "Rei Vitório," chegaram Pe. João Maria Lona e Pe. Fortunato Mantovani. Pe. Cirilo Zadra e Pe. Mantovani transferiram-se para Castro a fim de coadjuvar Pe. Pelanda. Pe. Lona permaneceu em Rio Claro.

Iniciou-se a construção do sonhado colégio com o lançamento da primeira pedra no dia 11 de dezembro de 1921.

No dia 12 de maio de 1922 chegou Pe. Fortunato Morelli. No dia 10 de agosto foi eleito Superior Gerar em Roma o Pe. João Batista Zaupa, que no dia 20 de outubro chegou de improviso ao Brasil para visitar nossas casas. (1)

Em fevereiro de 1923 foi instituída a corporação legal, com o nome de "Associação dos Estigmatinos para Educação e Instrução Popular", com publicação no Diário Oficial do Estado de São Paulo aos 17 de fevereiro. Foi registrada no cartório de Registro e Hipotecas no dia 23 de fevereiro. À Associação legalmente constituída e reconhecida foram passados todos os imóveis e terrenos, que até aquela data estavam em nome dos vários confrades, tanto no Estado de São Paulo como no Paraná.

No dia 20 de março chegaram Pe. Júlio Sieff e Ir. Alfredo Casolari.

Fiz várias viagens de Missão em Tibagi, algumas em companhia de Pe. Ferrúcio.

Uma vez, chegando a Colonia D'Anta, Pe. Ferrúcto entrou na capela, viu sobre o altar várias imagens sujas e quebradas. Havia uma imagem de São Sebastião, dentro de um copo sem pernas. Tirou-o de lá, e no lugar colocou um lindo Crucifixo. Quando o povo chegou e viu que faltavam as imagens de Santana e de São Sebastião foi um Deus nos acuda!
- Onde está minha Santana tão milagrosa? Gritava um.
- E o meu São Sebastião? Berrava outro.
- Quem os levou embora? Tão milagrosos! Santana me curou a mula! São Sebastião curou metade de minha manada de porcos. Quantas vezes protegeu-me do mau olhado!
- Onde estão? Quem as roubou?

Soube-se logo que o padre as havia substituído pelo crucifixo. Não foi possível acalmá-los! Nem mesmo prometendo trazer uma Santana nova e um novo São Sebastião! Queriam os velhos e quebrados que foram totalmente destruídos! A confusão durou muito tempo e houve quem fizesse ameaças. Seriam cumpridas se não interviessem os senhores Guimarães e José de Mauro, duas pessoas de influência em Colônia D'Anta. Eles deram um jeito de esconder Pe. Ferrúcio. Do contrário o povo o teria linchado, mesmo que as imagens nada valessem! Estavam exasperados e furiosos. As conseqüências continuaram por vários meses. Comentou-se o fato até em Tibagi.

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(1) Após esta Visita Canônica do Superior Geral, Pe. João Batista Zaupa, foi constituída a VISITADORIA do Brasil. Primeiro Visitador Ordinário foi Pe. Albino Sella. (N. d. R.)