20. MINHA PRIMEIRA VIAGEM - II


O título da Crônica de Pe. Adami “MINHA PRIMEIRA VIAGEM” foi dividido em seis partes:
a) três (números 19, 20, 21) são dedicados às atividades apostólicas;
b) três (números 22, 23, 24) referem-se a curiosidades e estórias da viagem.

LAGOA


A viagem estava programada para Lagoa, que distava 4 léguas dali. Seriam 24 quilômetros de floresta no verdadeiro sentido da palavra, infestada de toda espécie de animais e cobras. Justamente por isso, Bonifácio aconselhou-me a procurar também uma boa espingarda. Encontrei uma nova em folha com as respectivas munições na venda do Antônio Guimarães. Comprei-a por trinta mil réis. O facão era um verdadeiro machado. Media de 40 a 45 centímetros de comprimento, 10 centímetros de largura, grosso, dois ou mais centímetros na parte das costas, afiadíssimo. Como estava, com um golpe cortaria uma árvore de 7 ou 8 centímetros de diâmetro. Podia e estava realmente armado. A despesa que fiz com ele e a espingarda foi muito bem aplicada.

À tarde chegamos a Lagoa. Não era grande, mas viria gente de toda parte. De manhã, na missa, a igreja estava cheia. Ouvi muitas confissões e distribuí a sagrada comunhão. Batizei um número discreto de crianças, entre as quais alguns índios. À tarde a costumeira janta de arroz com feijão, reza, algumas confissões. Quem visse a casa onde passamos a noite, no meio do belo sertão, acreditaria que estivéssemos completamente segregados do resto do mundo. Na manhã seguinte celebrei a santa missa numa capela de madeira, próxima da casa. Chegaram algumas pessoas a cavalo, outras a pé; ao todo cerca de duzentas pessoas que apareceram de vários lugares, dando a impressão de ter grande população no local.

Fiquei dois dias no lugar dando um pouco de catequese aos meninos que consegui reunir. Batizei, confessei e fiz casamentos. Na segunda noite houve uma festa de casamento. Eu não quis ir apesar de convidado. Nela aconteceu uma briga entre os homens, esquentados pela “marvada” pinga; poderia ter tristes conseqüências; todos portavam facões e pistolas, como era costume. Felizmenmente a intervenção de uma pessoa influente evitou a briga e os ânimos ficaram relativamente calmos. O dono da casa onde pernoitamos era um grande caçador; as paredes estavam cobertas de peles variadíssimas e troféus de suas famosas caçadas.


SÃO JERÔNIMO

A seguir começamos o pior pedaço da viagem. Fomos para São Jerônimo. Não tínhamos feito quatro ou cinco quilômetros quando nos deparamos com a estrada obstruída por grossas árvores. À noite uma tempestade de vento derrubara muitas árvores velhas, talvez seculares. Estavam atravessadas no trilho, e por causa de sua grossura não permitiam a passagem. Sair do trilho era impossível por causa das plantas com espinhos que fechavam qualquer passagem. Pular as árvores com os cavalos era arriscar-se demais.

O que fazer? Apeamos, amarramos os animais numa árvore e, pegando o facão, começamos a cortar o mato em volta das árvores caídas, abrindo um novo trilho. Não era uma tarefa de cinco minutos! Quem conhece mata fechada, repleta de espinheiros e urtigas sabe quanto tempo se emprega para a abertura de um vão suficientemente largo para deixar passar os animais selados e carregados com mochilas. Levou muito tempo! Caminhamos, comentando o acontecido; pouco depois surgiu outra árvore caída e dentro de uma poça d’água. Paciência! Apeamos e repetimos a tarefa. Lá se foi outra meia hora.

No entanto o pequeno trilho, barrento, mudou de forma, tornando-se um canal com mais de meio metro d’água. Caminhamos dentro da água sem poder ver ou distinguir nada. De repente o cavalo empacou, farejou o chão e não quis prosseguir. Eu o esporeei, bati-lhe com o relho, e o repeti com mais força. Idéia idiota! Ele deu um passo e mergulhei até a sela em um buraco. Saltei rapidamente na água e, ajudado por Bonifácio, puxei o cavalo que se agitava, batia as patas anteriores e me arrastava. Enfim, saí do atoleiro. Imaginem minhas roupas e a que condição ficou reduzida a mochila com a roupa para troca! Barro por todo lado: na sela, no pescoço e na cabeça do cavalo.

Bonifácio montava a mula e foi mais felizardo. Eu sabia por experiência que diante de um perigo qualquer o burro ou a mula não vai adiante; pode-se bater, esporear quanto se quiser; com uma manobra repentina volta atrás, mas não cai na armadilha. Eis a razão porque nas longas e perigosas viagens todos usam mulas ao invés de cavalos! Por isso, custavam mais do que os cavalos! Eis porque os próprios militares que devem subir e descer montanhas, atravessar torrentes, caminhar em trilhos pedregosos, usam mulas em vez de cavalos! Os cavalos, talvez por serem mais nobres que as mulas não são afeitos a trilhos perigosos. Se forem forçados a enfrentar o perigo, seguem para frente: acontece o que aconteceu comigo. Aprendi de uma vez: nas futuras viagens, só o burro e a mula serão meus preferidos.

- Coragem Bonifácio - gritei - a coisa ainda vai ficar pior!

Olhei para o relógio. Eram onze e meia e só havíamos feito 10 quilômetros! São Jerônimo ficava ainda a 35 quilômetros. Nenhuma casa à vista! Somente mata e mais mata! Podia-se gritar, pedir socorro, berrar. Viria uma onça nos visitar, mas gente mesmo, nunca. Prosseguimos, pisando sempre em água; estávamos próximos da vertente do rio São Jerônimo. Não se podia evitar a água.

Já tínhamos perdido muito tempo. Fizemos, então, nossa refeição cavalgando. Tínhamos pedaços de pão duro que trouxéramos de Tibagi. José Macedo nos dera um pedaço de leitoa. Isso foi nosso almoço, regado com um gole de bagaceira.

Antes de chegar ao rio encontramos outra árvore obstruindo o trilho. Por sorte a passagem era mais larga. A mata estava limpa e pudemos prosseguir dando a volta, sem descer do cavalo.

Do outro lado do rio havia uma casa onde vivia uma família de cristãos. Bonifácio a conhecia. Passamos a noite ali, pois era bem tarde. Eu e Bonifácio estávamos cansados. Sem dúvida, os animais também. Pudera!

O rio São Jerônimo, que ordinariamente dá vau, subiu e engrossou no local em que estávamos. Além do vento, chovia fortemente. Como passar?
- Padre - disse Bonifácio - eu vou gritar e Chico nos virá buscar com a canoa.
- Chicooo! Chicooo! Aqui está o padre! Você pode vir com a canoa? Chicooo!
- Quem está gritando? Respondeu Chico do outro lado.
- Aqui está o padre, venha com a canoa!
- Oh! Minha Nossa Senhora das Dores! Vou já.

Ele chegou de pé na canoa, atravessando o rio largo e impetuoso. Saudamo-nos e fiquei observando a canoa. Certamente não tinha mais de dois metros e meio de comprimento por meio de largura. Balançava por todo lado.

Bonifácio, ajudado por Chico, levou as selas dos animais e as colocou no meio da canoa junto com as mochilas. Chico partiu e levou tudo para o outro lado. Eu continuava a observar a canoa; às vezes parecia querer virar. Uma onda saltou sobre a borda e só molhou as selas e mochilas.

Chico voltou e me convidou a entrar. Desta vez iria só eu em sua companhia. Fiz o sinal da cruz, entrei e ajoelhei-me no meio, segurando firmemente nas beiradas. Saímos. As ondas banhavam meus joelhos. No meio do rio, um tronco grosso, levado pelas águas, quase bateu na canoa. Chico gritou:
- Virgem Santa, ajudai-nos!
Por fim pulei aliviado sobre a margem.

O cavalo foi ajudado por Chico e Bonifácio. Aquele governando a canoa com um pequeno remo; este ajoelhado na canoa, segurava com a mão direita o cabresto do cavalo para manter sua cabeça fora da água, pois o corpo estava totalmente imerso. Por último, a mula que, como o cavalo, foi ajudada por Bonifácio.

Júlia estava na porta da casa junto com Sandro e nos recebeu com entusiasmo.
- Nossa, padre! Em que estado o senhor está! Também, com este tempo, com estas estradas! Entre, entre que temos bastante feijão e cama para o senhor.

Era a única família perdida naquele sertão. Ninguém morava nas vizinhanças! Chico tinha um terreno enorme para trabalhar e engordar porcos em mata fechada. Era uma das principais criações da região.

Ao encontrar Chico e sua família eu soube que o imenso território em que sua família habitava, na selva, pertencia ao governo. Na verdade, quem quisesse poderia escolher um lugar que mais o agradasse e trabalhar, semeando e colhendo. O governo não se importava e não havia taxas a pagar. Isso, porque o caboclo ordinariamente chegava a um lugar, limpava, plantava, colhia e depois partia para outro local a fim de executar o mesmo trabalho.

Quem quisesse estabelecer-se definitivamente no lugar escolhido, fazia uma petição ao governo, chamava um agrimensor, media o comprimento e a largura do terreno. Pagava o serviço e se tornava proprietário.

Chico há muito tempo criava porcos. Havia engordado e vendido milhares! Possuía atualmente grande quantidade! Em sua casa vi montes de milho, abóboras, batata, feijão, pedaços de carne pendurados na parede, sacos de farinha de mandioca e o inseparável garrafão de pinga. A pinga não faltava em casa alguma. É destilada da cana de açúcar, abundante por aqui; o destilador sabe como torná-la deliciosa e dar-lhe o grau alcoólico mais conveniente.

Júlia preparou uma janta substanciosa à base de feijão e arroz. Enxugou nossas roupas e as limpou do melhor modo possível. Terminada a reza do terço a família se confessou e conversamos por algumas horas. A cama não era cômoda, nem macia. Graças ao cansaço passei a noite num sono só.