3. EM ALTO MAR


O vento soprou e nosso navio começou a dançar a tarantela. Aumentou a violência do vento e entramos em plena borrasca ao ingressar no mar Adriático.

Os marinheiros soltaram as amarras dos barcos de salvamento e comunicaram: “mar agitado por várias horas”. Em baixo, ouviam-se lamentações, choros de crianças, gritos das mães apavoradas, vindos do meio dos pobres colonos, confinados como prisioneiros ou escravos.

À tarde, no jantar, e, ao meio-dia no almoço, as mesas estavam quase vazias. Havia gritos e grunhidos de ânsia de vômito em cada canto do navio. Nós conseguimos resistir, embora a cabeça girasse e o estômago quisesse revoltar-se. Ir Domingos aproximou-se e me disse:
- Desta vez iremos para Patrasso duplamente. Referia-se à expressão italiana ir a “Patrasso”, que significa “estar perdido”.

Ouvi os marinheiros, correndo sobre o convés, preparando cordas e rodas, amontoando salva-vidas e dizendo entre si:
- Se o Adriático está assim, imaginem só o Mediterrâneo! Então, nós também ficamos impressionados. Confesso de me haver recomendado a Nossa Senhora recitando várias vezes o hino "Salve, estrela do mar”.

A borrasca não cedia e piorava cada vez mais. As costas da Itália e da Dalmácia, que seriam visíveis de manhã, continuavam escondidas. O vento soprava assustadoramente e o desnorteado Atlanta já não dançava, mas galopava. Eram montanhas de água que de um momento para outro se transformavam em profundos abismos. O jogo do balanço e das ondas mudava muito rapidamente. Quase ninguém suportava a tortura e muitos correram à amurada para prestar homenagem ao mar. Imaginem as vacas atiradas de um lado para outro: mugiam, caíam, levantavam-se, escorregavam, caíam de novo em um zigue zague, o que aumentava o horror da cena, já trágica por si mesma. Ouviam-se lamúrias e críticas. Três sobrinhos do Pe. Sanson se queixavam do tio, que os trouxera para morrer no meio do mar; eles que se encontravam tão bem em Pordenone. Procuramos consolar e acalmar os mais próximos a nós, e o conseguimos em parte.

Navegamos por dois dias e não havíamos ainda ultrapassado a ilha de Corfu. Conseguimos vê-la à tarde. Ao meio-dia do dia seguinte nos aproximamos de Patrasso. A tempestade se acalmara um pouco, talvez por estarmos mais perto da terra firme.
E, enfim, Patrasso! Ufa, que alívio!

Entramos no porto. Não era grande, mas bem defendido e limpo. Vimos pela primeira vez os gregos com seus clássicos sapatos de pano tendo a ponta virada para cima e terminando com um floco vermelho. O navio foi abastecido com água e carvão. Carregou gente e um monte de caixas e baús. Ficou atracado perto de sete ou oito horas.

Aproveitamos a ocasião para descer e visitar rapidamente a cidade, que não era grande. Compramos também um mapa para saber qual rota faríamos nos dias seguintes. Visitamos a igreja greco-ortodoxa, próxima ao mar. Andamos ao acaso de um lado para outro, por ruas e praças e encontramos uma loja com uma tabuleta: Bibliocápelos (papelaria). Entramos e compramos um mapa do Atlântico e da América Latina, que nos serviu muito durante a viagem.

Ao retornar encontramos o navio com toda a comitiva. Embarcaram gregos e árabes que iam para o Brasil. Durante a viagem pudemos conhecer os costumes dos recém embarcados, seu modo de falar, de vestir, de comer, seus cantos religiosos ao cair da tarde e ao despontar da manhã. Vimo-los estendidos sobre a parte mais alta do navio, amarelados como se estivessem mortos, por causa da tempestade, que piorou no mar Mediterrâneo.

A próxima parada foi em Almeria, no Sul da Espanha. A caminho, vimos a bela Sicília, o vulcão Stromboli, e depois nada mais. Os galopes e saltos do mar raivoso recrudesceram a intensidade das lamentações, dos palavrões e das maldições dos italianos, arrancados de suas belas e poéticas aldeias para serem conduzidos a uma terra desconhecida. Procuramos ser pacificadores, mas nem sempre obtivemos êxito.

Não pudemos rezar a santa Missa. Só aos domingos, Pe. Sanson, ajudado por nós, celebrava e nos dava a comunhão. A tempestade continuava muito forte e não dava sinais de amainar. Só me lembro de que de medo, eu dormia no convés, ao relento, na expectativa de que em caso de naufrágio, seria mais rápido entrar num barco de salvamento. Pe. Grigolli, freqüentemente, benzia o mar bravio com seu crucifixo de missionário. Contudo, o céu não nos ouvia. Pacientes e resignados, seguimos viagem.

Certa hora aproximou-se de mim um homem forte e enorme, que se assemelhava a um gigante, com os olhos esbugalhados e quase fora das órbitas.
- Mon père, me disse em francês, J'ai rendu mon tribut à la mer (em português: Padre, já paguei meu tributo ao mar).

Acabei sorrindo. Pe. Alexandre, também. E observou:
- Este pessoal não tem força, não tem estômago, enquanto nós... nós... gglu... gglu... enquanto... nós... ó não.... guahhh, guahhh, guahhh. E uma lambança saiu de sua boca.

Fiquei com pena do infeliz! Ele procurou ser forte, resistir, mas teve, também, que dizer: Paguei meu tributo ao mar. Eu sorri. Não por desdém, mas porque se vivia numa angústia, que parecia não ter fim. Por isso se aproveitava com prazer de qualquer ocasião para rir.

Três dias após a partida de Patrasso, chegamos a Almeria. Porto lindo; cidade pequena, mas bonita. Ela dobra-se sobre o mar e mostra soberbamente a antiguidade de seus palácios de estilo mourisco. Expõe pedras marmóreas, que íngremes, chegam até a praia.

A parada foi breve e prosseguimos viagem, aguardando que a tempestade parasse de um momento para outro. Então vimos os escolhos das Formigas, que apenas afloram à água e que foram a causa do naufrágio do vapor Sírio, ocorrido em 1900. O desventurado vapor navegava para o Brasil. Nele estava o arcebispo de São Paulo, dom José de Camargo Barros, que morreu; seu corpo foi encontrado muito tempo depois, nas praias da ilha de Málaga. Nele estava também dom José Barreto, Bispo de São Carlos do Pinhal, que se salvou por milagre, mas perdeu boa parte da memória. Foi terrível! Para nós, também foi uma desgraça, pois, dom José de Camargo Barros, Arcebispo de S. Paulo combinara, na Itália, com o Superior Geral, a vinda de ao menos seis padres estigmatinos para o Brasil no ano de 1900. Tendo morrido o Arcebispo no naufrágio, o Superior julgou-se livre da incumbência. Ninguém veio para o Brasil. Isso ficou marcado e mais tarde veio à tona. Foi-me jogado na cara, quando me apresentei ao sucessor, dom Leopoldo Duarte e Silva. Depois do naufrágio, D. Leopoldo ficou Vigário Geral da Diocese e, a seguir, foi eleito Bispo. Oras! Promessa é compromisso sério e deveria ser mantida!

À vista da cônica e bela ilha de Málaga nos recordamos do vinho homônimo que exportava. Sinceramente, mesmo que o tivéssemos à mão, não o beberíamos, devido ao estômago revirado pela tempestade, que mesmo tendo diminuído, ainda nos açoitava.

E eis... que Gibraltar surgiu à nossa frente!