26. EM ÁGUA CLARA E MONJOLINHO


Preparei tudo e desta vez dirigi-me ao sul de Tibagi com meu companheiro, o caríssimo Bonifácio. Parti para Água Clara. Localizava-se a cinco léguas de Tibagi. Na capela de madeira encontrei-me com bastante gente reunida. À tarde rezei o terço e fiz um belo sermãozinho. Cantaram as ladainhas. Logo depois as confissões mantiveram-me ocupado até às nove da noite. O dono da casa era um homem sério, muito bom. Parecia um filósofo.

O quarto era discreto, mas a cama, dura, dura mesmo! Dormi pouco durante a noite. Na santa missa distribuí muitas comunhões, fiz 11 batizados. À última hora um casamento foi desmarcado.

A novidade foi o papo com Tomé que sabia de cor quase toda “Gerusalemme Liberata" em português. Recitou para mim longos trechos dos diversos cantos. Fiquei pasmo! Ele a estudara quando jovem, e se não tivesse ficado órfão, poderia ter-se tornado um grande literato!


De Água Clara partimos para Monjolinho. Eram seis léguas, com duas perigosas torrentes para atravessar. Por uma, com dois metros de largura, se passava sobre uma pedra imersa na água e quase invisível; em ambos os lados havia um poço fundo! Ai se o cavalo errasse o passo!

Bonifácio foi à frente mostrando onde eu devia pisar. Recomendei-me a Deus e fui adiante. A passagem era obrigatória por causa dos poços e da mata impenetrável. Nossa Senhora me ajudou.

Em Monjolinho muitos batizados e 12 casamentos.

Todos aspiravam à grande honra de ser padrinho ou madrinha de batizado. O padrinho era considerado por seu afilhado mais do que o próprio pai. O afilhado devia respeitar o padrinho sempre e em qualquer lugar, como também o deviam seus compadres, os pais do batizando.

Se o afilhado deparasse com o padrinho pelo caminho, devia ir a seu encontro e, tirando o chapéu e juntando as mãos, dizer: "Bênção, padrinho! E o padrinho: "Deus te abençoe, meu filho!". Ai se o afilhado não o fizesse. Receberia severas repreensões. Se estivesse com alguém “batendo-boca" e, por acaso se avizinhasse o padrinho, aquele deveria parar imediatamente, calar-se e pedir a "bênção". Se estivesse fumando e chegasse o padrinho, deveria parar de fumar imediatamente. Por essas razões ser padrinho era uma grande honra e a ambição de todos.

Alguns eram convidados para padrinho, mas sabiam que não lhes era permitido, porque eram tidos como mau caráter, ou não eram casados na igreja. O missionário tinha a lista destes tais e a consultava em todas as viagens de Missão. Se alguns desses se apresentassem, naturalmente o missionário não os aceitaria como padrinhos.

Havia os prepotentes que diante da recusa do padre fingiam enfurecer-se e o ameaçavam, colocando a mão no cabo do revólver que quase todos portavam na cintura. Era sempre um "Smith-Wesson" americano. Para tal comportamento se preparavam tomando muita pinga. Quando estavam bem alegres e com os olhos meio fora das órbitas, apresentavam-se ao padre:

- Padre, eu quero fazer um batizado!
- Decerto, se for possível!

O padre, na maioria das vezes, fora avisado pelo chefe da comunidade. Se tivesse dúvida, consultava seu caderno e descobriria logo quem estava na lista negra.
- Desculpe, mas o senhor não pode ser padrinho. O senhor bem o sabe!
- Eu? Eu não sei nada! Qual é o problema?
- O senhor sabe que quem não é casado na Igreja, não pode ser padrinho de ninguém.
- Mas, eu sou casado há muitos anos!
- Porém, não na igreja. Você o sabe e todos aqui o sabem.
- Barbaridade! Então, eu vim de seis, sete, oito léguas de distância e não posso ser padrinho? O que está dizendo padre? Olhe, seu padre! Abra o olho!

O que fazia o tal valentão? Aproximava-se do padre com a mão na coronha do revólver, quase se esfregando nele para testar e saber se o padre também tinha ou não um revólver. Se, esbarrando no padre, percebesse que ele também tinha revólver, devagarzinho o corajoso se acalmava e ia embora com cara fechada. Se percebesse que o padre estivesse desarmado, então redobrava a coragem, gritava, ameaçava, fazia gestos mal educados, chamava quem o pudesse sustentar na discussão com o padre.

Naturalmente o padre não devia demonstrar medo. Com bons modos, sim, mas com energia deveria manter o direito da religião e da Igreja, e... deixar falar... ameaçar... Era uma cena feia, mas acontecia muitas vezes.

Encontrava-me em Monjolinho e o chefe da comunidade avisara-me que apareceriam e se apresentariam alguns dos vetados para padrinho. Consultei a lista negra e nela constavam os nomes relatados por ele.

Estava na igreja e finda a missa comecei os batizados. Terminei o primeiro grupo. Fiz mais 7 ou 8, e acreditava haver não haver mais nada. Enquanto guardava os santos óleos apresentou-se um sujeito alto, de cara feia e cheirando a pinga.
- Padre, disse, tenho um batizado a fazer, e queria que fosse logo porque quero voltar para casa. Era um dos tais. Olhei de frente e lhe disse:
- Eu ficaria muito contente em fazer o batizado, mas o senhor sabe que não pode ser padrinho!
- E por que? Perguntou-me logo com ar de soberba.
- Porque o senhor não é casado, oras!
- Eu? Eu sou casado, sim. Vassuncê pergunte a quem quiser.
- O senhor está junto com uma mulher, mas não é casado na igreja. Todos aqui sabem.

O homem levantou a voz, cuspiu no chão e se aproximou de mim, falando alto e apresentando suas razões. Percebi que se esfregou em meu lado. Imediatamente, acalmou-se, mediu as palavras, conteve os gestos. O fato é que eu tinha na cintura um "Steyer", de um palmo e meio de comprimento, de nove balas, de calibre oito! Revólver que os oficiais austríacos usavam na guerra. Era tão volumoso que o valentão o poderia ter notado mesmo sem se aproximar tanto. Não era bom exemplo que o padre também portasse armas, mas as circunstâncias o obrigavam a se precaver.

Ai, se o Padre cedesse uma só vez! Ou num só lugar! A notícia correria de boca em boca e não haveria meios de contê-los. O padre ficaria à mercê deles.