15. TIBAGI


O município de Tibagi encontrava-se no Estado do Paraná. Era sede de comarca homônima, com quarenta e dois mil habitantes, dos quais, cerca de mil na cidade; os outros espalhados por vilas e bairros no sertão. Existiam 18.000 índios das tribos Caingangue, Coroados e Caju. A missão tem 32.000 quilômetros quadrados. O clima de setembro a março era quente, chegando às vezes a 40 graus centígrados; nos outros meses tornava-se mais ameno. A vegetação era luxuriante; havia frutos de todos os tipos; as flores e folhas permaneciam viçosas o ano todo.

Existia na cidade uma igreja não muito grande, feita de barro batido, trabalho dos escravos em tempos passados. Cerca de duzentas casas estavam espalhadas num grande quadrado, cortado por belas ruas, ainda que não asfaltadas. No centro uma linda praça, enfeitada de esplêndidos cinamomos. A Igreja estava rodeada por altas palmeiras, e possuía três sinos com som maravilhoso. Os padres moravam numa casa bonita, à esquerda da igreja. Era de madeira, com quatro quartos, um refeitório, uma cozinha e a própria despensa. Ao redor, um pomar que descia até o rio; além disso, uma cocheira, pás, cavalos e outros animais domésticos.

Os padres escalabrinianos viviam há vários anos em Tibagi. Encontramos Pe. Carlos Pedrazzani e Pe. Cláudio, que nos atendeu e nos fez entrar.
- Bom dia padre.
- Bom dia.
- Nós somos os estigmatinos que viemos para tomar posse da paróquia-missão de Tibagi. Eis uma carta de seu superior geral, Pe. Vicentini.

Pe. Cláudio pegou a carta e foi ao pomar, onde Pe. Carlos, com um chapelão de sol, cavava a terra. E lhe disse:
- Olha só Pe. Carlos. Aqui estão dois padres que dizem ter vindo para tomar posse da paróquia.
- Mas eu não sei de nada, respondeu o outro.
Após uma breve pausa, continuou:
- Tenho sobre a mesa do quarto uma carta que recebi há alguns dias do Superior geral. Quem sabe a notícia esteja lá!

Assim dizendo, entraram juntos no quarto e fecharam a porta. Alguns minutos depois saíram e Pe. Carlos nos disse:
- Muito bem, muito bem. Entrem e tragam para dentro sua malas e o restante da mudança. A notícia de sua chegada e conseqüente tomada de posse na paróquia está mesmo nesta carta do Superior. Mas, infelizmente, esquecido como sou, ainda não a havia lido. Não tem importância! É assim e assim seja.

Entrementes, uma negra, a criada, preparava a comida. Os padres nos rodearam contando e perguntando mil coisas; finalmente chegou a hora de sentar-se à mesa.

Pe. Carlos havia matado uns passarinhos que foram servidos regados com vinho feito de uva americana; tinha gosto semelhante a percevejo, mas o engolimos com satisfação.

Terminada a refeição nos sentamos no jardim e começamos a conversar sobre a Missão: quantos habitantes, quantos quilômetros de largura e comprimento, as marcas das divisas, como e quando se visitavam as capelas. Assuntos estes que continuaram por alguns dias. Quem se encarregava de falar tudo detalhadamente era Pe. Carlos, vigário e superior. Pe. Cláudio estava entretido com um licor de sua invenção, feito de ervas encontradas no mato; fez-nos prová-lo e o achamos maravilhoso.

Visitamos os arredores de Tibagi; experimentei logo uma espingarda que Pe. Carlos me deu. Recordo-me de ter matado uma bela perdiz quase tão grande como uma galinha. Experimentei cavalgar um burro e um cavalo que por muitos anos servia para as viagens de Missão. Descemos muitas vezes até a margem do rio. E assim se passaram duas semanas.

Um dia Bonifácio, o sacristão, me chamou para um batizado na igreja. Fui, batizei e recebi 6.000 réis de oferta. Corri logo a entregá-los a Pe. Carlos. Ele me disse:
- Caro padre, este dinheiro é seu! Agora são vocês que cuidam de tudo. Nós iremos embora dentro de alguns dias. Então os entreguei a Pe. Alexandre que sorriu e colocou-os numa caixinha dizendo:
- São os primeiros.
- E os únicos, conclui.

Começamos a fundação da Missão com uma lira e cinqüenta centavos. Podemos dizer que foi o bom Deus que a quis e nos ajudou. Não tínhamos outros meios.

Pe. Cláudio devia ser o primeiro a partir. Um dia, enquanto almoçávamos juntos, ele disse a Pe. Carlos:
- Estou de saída, mas não quero ir como um ladrão ou malfeitor! Quero dar um adeus ao povo da cidade!

Pe. Carlos respondeu:
- Muito bem! Assim iremos nós para a despedida e os novos padres para a apresentação.

Fomos! Pe. Alexandre se irritava ainda muitos anos depois pensando no papel que tínhamos feito. Nada era nada de mais. Explico.
Quando entrávamos numa casa Pe. Cláudio começava:
- Então, até um dia. Desculpem alguma falta que de certo cometi e agradecido por tudo. Rezem por mim.
Em seguida Pe. Carlos acrescentava:
- E aqui estão os novos padres que tomarão conta de Tibagi.
Pe. Alexandre fazia inclinação sem dizer nada e me olhava.

É preciso conhecer Pe. Alexandre e seu caráter para entender que ele não era a pessoa indicada para aquele papel. Isso aconteceu em todas as famílias. Saíamos de uma porta, entrávamos em outra: sempre as mesmas palavras, a mesma inclinação, o mesmo olhar. Parecia perguntar-me:
- Ei, e eu, o que devo dizer?

Muitas vezes lembrei-me do que li no famoso romance " Fric, Froc e la Santucciariella ", a qual perguntava ao marido que apertava a mão de todos os que o haviam proclamado prefeito:
- E eu o que devo fazer?
E Fric e Froc:
- Você não deve dizer nada. Só cumprimente!

Muitos anos depois Pe. Alexandre me dizia:
- Você se lembra? Que vergonha! Para os brasileiros, especialmente para os de Tibagi que não eram muito cultos, aquilo nunca foi ridículo. Todos faziam a mesma coisa, diria alguém.

Depois daquelas visitas, Pe. Cláudio partiu, e nós fomos acompanhá-lo até a balsa do rio. Mais tarde, foi vigário de Água Vermelha, perto de Curitiba. Viveu pouco tempo; com o surto da febre espanhola de 1918-19 recebeu o prêmio dos justos no paraíso.

Pe. Carlos ainda ficou conosco cerca de um mês. Durante este tempo pudemos estudar melhor o estilo de nossa Missão. Ele nos contou como faziam para viajar e visitar os cristãos, como se devia agir com os índios, como deveríamos preparar-nos para sofrer com as enormes fadigas, com a rudeza de certas pessoas e com certos alimentos.

Fizemos ainda alguma cavalgada junto. Visitamos a fazenda e o fazendeiro de Fortaleza a poucos quilômetros de Tibagi. Saímos para algumas caçadas e pude ver como era fácil encontrar e matar perdizes.

O negócio mais importante daqueles dias foi a compra da casa com tudo o que continha, inclusive os animais de sela e domésticos. Não tínhamos dinheiro; só aquela bendita lira e os 6.000 réis dos batizados. Foi-nos dado prazo à vontade para pagar e assim ficou tudo acertado.

Iniciou-se o inventário. Foi tudo anotado, até o último copo e garfo. Não nos preocupamos com as minúcias, pois a vontade de ficarmos sozinhos e donos da casa, em nossa Missão, nos fez passar por cima de muitas coisas. Tudo englobado, cavalo, burro, galinhas, perus, garrafas vazias, alguns sacos de farinha de mandioca, porquinhos da índia, ficou em 3 contos e 500.000 réis, que correspondiam a 10.500 liras italianas. Tempo útil para pagar: à nossa escolha!

Foram aceitos e assinados os papéis pelas partes contraentes. Dentro de dois ou três dias, deveríamos ir a Curitiba para autenticar o contrato com o Provincial dos Escalabrinianos, Pe. Martini, e com as autoridades governamentais. Uma garrafa de vinho com gosto de percevejo selou o contrato.

No fim de abril os padres Alexandre e Carlos partiram à cavalo para Curitiba via Castro. Deixando os animais em Castro, prosseguiram viagem de trem para Curitiba. Foi tudo acertado com Pe, Martini. Pe. Carlos ficou em Curitiba e Pe. Alexandre, depois de uma visita ao bispo, voltou para Tibagi. Antes me enviou um telegrama para que fosse esperá-lo na estrada de Castro.