21. MINHA PRIMEIRA VIAGEM - III


O título da Crônica de Pe. Adami “MINHA PRIMEIRA VIAGEM” foi dividido em seis partes:
a) três (números 19, 20, 21) são dedicados às atividades apostólicas;
b) três (números 22, 23, 24) referem-se a curiosidades e estórias da viagem.

AINDA EM SÃO JERÔNIMO


A manhã seguinte era clara e prometia um dia de sol. De fato foi assim. Celebrada a santa missa, na qual dei a comunhão aos três da casa, fiz excelente refeição. Júlia nos preparou uma sacola com os bens de Deus para a viagem e partimos com Chico, que nos acompanhou por alguns quilômetros. Despediu-se, apertando-nos a mão, dizendo: “Até a volta”.

Caminhamos à sombra de árvores imensas! Elas nos refrescavam. Vimos grandes quantidades de borboletas de variadas espécies e cores! Vimos pássaros coloridos e belíssimos. Mas não cantavam. Um deles atraiu minha atenção. Ouvi não muito longe, um som semelhante ao ferreiro que bate o martelo na bigorna. Golpes secos, diferentes e intercalados.

- Bonifácio, perguntei, há ferreiros neste fundo de sertão?
- Não, respondeu-me, é uma ave, a araponga! Tem o tamanho de uma pomba, cor branco-cinza, com pequenas manchas no peito.

Diante de nós voou um faisão! Ah, se eu o tivesse visto antes! Passei a observar melhor a estrada, pois poderiam aparecer outros! Neste caso, experimentaria minha espingarda nova. Num ramo de árvore alta, vi, pouco depois, um pavãozinho! Parei e o derrubei num tiro só. Serviu para a janta de dois dias.

- Padre, me disse Bonifácio, fique de olho, pois é possível que haja caça grossa! Olhei ao redor e vi rastos de onça! A terra da mata era sempre úmida, e se passasse algum animal, poder-se-ia ver os rastos mui facilmente. Bonifácio me mostrou rastos de onça. Duvidei afirmando que eram de cachorro. Bonifácio, mais esperto, me respondeu:
- Não, Padre. Em primeiro lugar aqui não existe cachorro, e em segundo, os rastos de cachorro deixam o sinal das unhas. Estes não o têm e veja como são grandes.

Naquele momento carreguei minha espingarda a bala e a segurei firme na mão. Não vimos onça. Foi muito melhor, é claro. Prosseguimos.

Passamos por um córrego. Sempre mata virgem.

- Aquilo que o senhor está vendo ali, padre, é uma embuia (para mim, semelhante à nogueira), me disse Bonifácio. É madeira muito preciosa; usam para móveis de luxo; pena que não haja estrada para comercializá-la. E aquilo mais atrás é mogno e, ao lado, o senhor vê ébano. Percebeu como é árvore escura? Mais adiante é sobreiro. Parei e com meu facão quis cortar um pouco de cortiça. Com ela se fazem rolhas usando a parte interior

Ao atravessar um pequeno riacho, o cavalo refugou! Olhei e vi uma cobra ao lado de uma grande pedra.

- É urutu, gritou Bonifácio. Venenosíssima! Apeou de sua mula, cortou, com o facão, um ramo comprido e bastante grosso. Com muito cuidado aproximou-se da cobra enrolada e matou-a com um só golpe.

O trilho, que flanqueava uma colina, começava a descer e chegamos à margem do grande rio Tibagi. Acompanhamos o trilho ao lado do rio, majestoso e costeado por plantas altas com vegetação luxuriante e densa. Avistamos ariranhas e algumas lontras que, fugindo assustadas, jogaram-se na água; mergulhando, reapareciam no meio do rio.

Descobri do outro lado do rio, uma árvore toda coberta de vermelho. Não eram frutas nem folhas. Eram araras vermelhas, pousadas nos ramos; levantando-se de vez em quando voavam, provocando grande gritaria e voltavam novamente ao lugar de origem. No meio do rio havia uma ilhota chamada “a ilha das araras”, justamente porque elas estavam sempre ali.

Chegou a hora de repousar um pouco e comer qualquer coisa. E o fizemos perto da margem do rio, acendendo uma fogueira com ramos verdes para manter afastados os milhares de mosquitos que atormentavam a nós e aos animais.

À contemplação do imenso rio víamos aparecer de vez em quando algum peixe, às vezes bem grande. Bonifácio me disse que eram dourados, ótimos para comer. Eram do tamanho de nossas trutas, talvez um pouco maiores. Diverti-me com minha espingarda, mas sem grandes esperanças de poder matá-los e pegá-los.

Partimos depois de uma hora e chegamos ao “toldo de Fidêncio”. Era uma parada ou aldeia de índios. Um bloco de cabanas de índios era chamada “toldo”. O toldo de Fidêncio, o cacique, situava-se do outro lado do rio e era formado por uma dezena de cabanas, separadas poucos metros umas das outras. Aí moravam cerca de setenta índios da tribo Caingangue. Tive vontade de visitá-los, pois entre eles havia alguns cristãos. Cuidamos bem dos animais, amarrando os cabrestos nas plantas e Bonifácio gritou perto da margem:

- Olá! Fidêncio! O padre está aqui! Venha com a canoa!
Vi na margem oposta algumas pessoas que corriam, mas não conseguia distinguir se eram homens ou mulheres. Eram os jovens. Montaram imediatamente em duas canoas e vieram a nosso encontro. Cinqüenta metros antes da margem, alguns se atiraram na água e nadando vieram até nós; mergulhando por baixo das nossas canoas, nos acompanharam até a outra margem.

No entanto, as mulheres que nos esperavam, gritavam:
- "Mojenkemó! Mojenkemó! Pandere mojenkemó!" (Bem-vindo, padre, bem-vindo!). Fidêncio apresentou-se em primeiro lugar. Estava enrolado em seu "'cury" (um lençol branco, quando está limpo). Em seguida aproximaram-se os demais. Estávamos no meio das cabanas. As índias socavam grãos num pilão escavado na pedra; os jovens se exercitavam com arcos e bambus; as crianças ficavam no colo das mães. Falamos em português, língua que todos entendiam bem.

Perguntei pelos cristãos. Seis se apresentaram; oito chegaram mais tarde quando perceberam que a pinga estava sendo oferecida aos primeiros. Fiz-lhes uma exortação cristã, distribuí dinheiro, que gastariam em São Jerônimo quando forem fossem “enjericy”, termo que usam para “compras”.

Tornaríamos a vê-los. Agora era necessário pôr o pé na estrada sem demora, pois o tempo estava bom e a distância que nos separava de São Jerônimo ainda era grande. Se a noite nos surpreendesse seria uma tragédia.

Rezei o terço com Bonifácio e prosseguimos conversando. Era quase noite quando entramos em São Jerônimo. Este é um dos lugares mais importante da nossa Missão. Está numa posição belíssima, salubérrima. Era aqui a residência do missionário no tempo do Império. Havia uma bela capela com todos os paramentos sagrados. Ultimamente houvera um forte surto de malária que dizimou quase toda a população. Muitos dos que sobreviveram, por medo, abandonaram o local.

São Jerônimo era um dos postos da catequese leiga para índios. Com o pretexto de proteger as tribos foi instituída pelo Governo, como resposta à catequese dos missionários. Esta obra esbanjava dinheiro em profusão; o resultado era parco. Sinceramente dizendo, revertia em bem dos próprios empregados. Tivéssemos nós tantos recursos!

Parei três dias em São Jerônimo, administrando sacramentos, ministrando catequese e papeando com o povo. Era importante o bate-papo. “Indivíduo bom de prosa!" era garantia de boa acolhida em qualquer lugar.

Conheci Timóteo. Como Fidêncio era índio que valorizava a própria cultura, desprezava as calças dos civilizados e usava o “curu”, feito de fibra de urtiga.

Celebrei, preguei e ensinei catecismo a adultos e crianças; os batizados foram 45 e os casamentos, 9.

No quarto dia, bem de manhãzinha partimos para Jataí. Sabíamos que não chegaríamos no mesmo dia. Eram onze léguas e o chão estava úmido e quase todo coberto de capim e espinho. Pedaço maravilhoso de chão! Parte dele parecia estar cavada na densa mata de plantas seculares, envolvida por um emaranhado de vegetação que o fazia parecer um túnel; parte costeava o rio Tibagi que se apresentava imponente nesta região.

Tínhamos um novo companheiro, de viagem. Um senhor de oitenta anos, cujo vigor e bom humor desmentiam a idade e encurtavam (como se costumava dizer) o caminho. Encontramos dois ou três grupos de índios que saíam para a caça: os homens munidos de armas antigas e de arcos; as mulheres carregavam provisões e crianças. Pediram fumo e pinga. Neguei-lhes, mas a prometi se fossem a Jataí. Eles concordaram.

Não demorou muito e começou chover. Naquele caminho, uma vez alagado e com nosso poncho, ou pata, ensopado e pesado, seguia-se devagarzinho. Às nove da noite ainda nos encontrávamos dentro da mata. A escuridão era completa e nossos animais se mostravam cansados. Começaram os relâmpagos e os raios. Ainda faltavam 4 quilômetros para se chegar a Jataí.

Naquela hora, sob a claridade terrificante dos relâmpagos e dos raios, perdi um pouco minha grande coragem. Com o terço entre os dedos, mudo como meus dois companheiros, não entendia mais nada e caminhava.

Um raio, golpeando um alto pinheiro bem perto de nós, me assustou; renovei minha consagração a Deus e ofereci a Ele tudo pelas minhas misérias e pela conversão dos índios. Foi um temporal assustador que passou rápido. À nossa chegada a Jataí o céu estava coberto de estrelas cintilantes.

Jataí é o oásis de toda missão tibagiana. Nela respira-se um pouco de cristianismo, merecimento de um padre capuchinho, que viveu ali sozinho mais de quarenta anos. Depois da morte do bom padre ninguém mais morou no lugar. Contudo, parecia que o falecido Pe. Timóteo trabalhasse invisívelmente para manter a fé no povo.

Existiam índios no lugar, mas desconfiados ao extremo. Era difícil aproximar-se deles. Quando se pretendia conhecer alguma palavra da sua língua, só com dinheiro ou objetos. Permaneci no lugar cinco dias para descansar e muito mais para dar a oportunidade ao povo de participar das santas missas, de receber os sacramentos e bênçãos.

Houve sempre grande presença de povo nas santas missas, no terço e na bênção da tarde. Pude pregar todos os dias e fazer duas reuniões com os membros da Companhia de São Pedro de Alcântara, aí existente. Os batizados somaram 54 e os casamentos 17. Visitei na outra margem do Tibagi (Jataí está situada na margem esquerda), um acampamento de índios, reunindo mais de duzentos deles. São da tribo Coroados, assim chamados porque cortam os cabelos em forma de coroa (como os frades de Santo Antônio).

Jataí era o lugar mais distante em minha viagem de missão. Já fazia vinte dias que estava viajando. No dia 5 de setembro parti de Jataí para a volta. Refizemos a estrada até São Jerônimo e prosseguimos para Lageado Liso, onde existia uma bela capelinha dedicada ao Sagrado Coração.

Parei por dois dias. Administrei 23 batizados e 8 casamentos. De Lageado Liso fomos para Vila Preta. São poucas casas e na manhã seguinte, depois da santa missa e 12 batizados, prosseguimos para Imbaú dos Batistas. Era um lindo lugarejo e, não tendo capela, as celebrações eram feitas na casa de José Batista. Muitos chegaram de lugares distantes; antes do meio dia já tinha feito 18 batizados e 4 casamentos. À tarde houve a "reza", na qual havia cerca de trinta pessoas.

Dois dias depois seguimos para Colônia d'Anta. Não era grande, mas como de costume, apareceu gente de toda parte a cavalo e a pé. Como sempre, santa missa, batizados e três casamentos.

Depois da santa missa partimos para Ventania, última etapa, antes de chegar a Tibagi. Pelas três horas da tarde estávamos lá. Uma multidão de pessoas se alinhava em uma longa fila. Festejavam e batiam palmas. Que estaria acontecendo? Assistiam uma corrida de cavalos. Paramos a certa distância e também ficamos observando.

Era o baio do Zé que concorria com o preto do Nhoca; depois o tordilho do Anacleto com o meio pelo do Estêvão! Eram quatro cavalos conhecidos em quase todo o Estado do Paraná! Correram em Curitiba e Ponta Grossa e levaram prêmio! O do Estêvão tinha um quarto de sangue puro, três anos e meio de idade, e quase cinco pés e meio de altura. Tomou parte também nas grandes corridas de São Paulo! A corrida era muito interessante e as apostas eram de 200.000 réis! No primeiro páreo o cavalo de Nhoca venceu de uma cabeça o de Anacleto. Houve um pouco de bate-boca, mas o resultado foi aceito por todos. No final foi o cavalo de Estêvão que bateu de meio corpo e até de corpo inteiro de forma brilhante. Nenhum conseguiu vencê-lo, e no final, Estêvão beijou-lhe o nariz.

Ficamos na casa do sr. Amaro. Bom católico e estimado por todos por sua seriedade e retidão. Acolheu-nos com satisfação, mandando um homem tirar as selas dos animais, tratou-os esplendidamente e nos ofereceu logo um ótimo café com pedaços de queijo feito por ele mesmo. No sertão a refeição da manhã e a merenda depois do almoço consistem em café reforçado com pedaços de queijo fresco fabricado na própria casa.

Mais tarde veio a janta e depois a reza. Apareceu muita gente. Depois da reza, os comentários sobre as corridas de cavalo.
- Certamente aqui ao redor não há um cavalo que possa com o meio pelo do Estêvão, dizia um.
- Porém, observava um outro, começa a envelhecer e garanto que não levará muito para o meio pelo ser vencido.
- O baio do Zé é um tanto barrigudo, porém, perdeu por pouco. Creio que vai melhorar. É um cavalo novo e logo baterá o meio pelo.
- O tordilho do Anacleto não vai dar nada. Tem as pernas tortas, é pesadão, muito fino e mal conformado. Anacleto quis só experimentá-lo, mas sabe que se quiser vencer precisará mudar de cavalo e comprar outro. Seria melhor que o tordilho fosse puxar carroça!

No dia seguinte, muitas comunhões na missa; depois 11 batizados, e após o almoço, dois casamentos legitimados; tinham se casado só no civil e foram abençoados pelo sacerdote com o rito da santa igreja. Passei o resto do dia visitando doentes e passeando por Ventania, lugar bastante aprazível, alegre e já fora do sertão.

No terceiro dia, partimos depois da santa Missa rumo a Tibagi. Viagem não muito longa, 4 léguas. Vim cantando e admirando os inúmeros papagaios, que aos pares voavam de um pinheiro a outro num chilreio indescritível.

Ao meio dia, almoço. Somente banana! Fiquei a imaginar uma ótima janta preparada por Pe. Alexandre por meio de Florinda. Não me enganei! Foi assim mesmo. Chegamos a Tibagi às quatro da tarde e Pe. Alexandre estava no harmônio com 4 meninos, ensinando canto. Correu a meu encontro; e depois de um olá, o beijo e o abraço. Em seguida, discorremos sobre notícias e planos para o futuro.

Tinha viajado por 35 dias! Administrara 127 batizados e abençoara 32 matrimônios. Para minha primeira viagem não estava mal. Uma segunda prestação (a primeira fora mandada logo depois da viagem de Pe. Alexandre) foi enviada a Pe. Martini em Santa Felicidade. A dívida da casa estava diminuindo.