17. VIDA DE INTIMIDADE


Após a janta sempre recebíamos alguma visita. Lembro-me do Sr. Leopoldo Mercer, do Sr. José Machado, professor e agente do correio, do Sr. Tôca, irmão de Leopoldo, do Dr. Juiz Braga, do advogado Dr. Otaviano e de muitos outros. O prefeito Sr. Borba jamais pôs os pés na casa dos padres. Era um fanático livre pensador que odiava os padres e a Igreja. Morria de raiva ao ouvir os sinos chamando os fiéis para alguma função. Morreu como um cachorro. Como um cachorro e às pressas foi levado ao cemitério, pois empesteava a cidade. Por sua fobia contra a religião discutiu com vários padres, mas levou sempre a pior, porque estava sempre do lado errado.

Ó infeliz Borba! Viveu odiado em Curitiba onde era deputado; viveu odiado em Tibagi, onde, segundo a opinião popular, cometeu alguns crimes pessoalmente ou como mandante. Viveu amaldiçoado por Deus, cujo nome ridicularizou com blasfêmias até o último momento da vida; morreu não querendo padre em seu quarto! Que o Senhor o perdoe por sua ignorância e o tenha na Paz!

Entre nossos visitantes alguns sabiam música. Havia quem tocasse trombone, clarinete, pistão. Imaginem! Pe. Alexandre com o harmônio e os outros com seus instrumentos. Muitas vezes a orquestra barulhenta tocava até a meia noite. Era divertido e alegre. Tudo servia para nos unir a eles e a outros mais, conseguindo a simpatia de todos.

O entusiasmo cresceu tanto que até eu fiquei com vontade de tocar algum instrumento. Mandei vir de Curitiba uma flauta de cinco chaves em DO e comecei a estudar. Depois de um mês podia desafinar junto com eles e rir como um louco. Durou muito tempo. Lembro-me de que, para a festa da Assunção da Virgem em agosto, juntei-me a Pe. Alexandre e aos cantores no coro para acompanhar a missa solene celebrada pelo Pe. Casimiro Andreiewski, vigário de Castro nosso hóspedes por alguns dias conosco. Naquela ocasião vesti uma camisa branca, com punhos engomados e mostrava as abotoaduras douradas e brilhantes! Também naquela oportunidade o velho Eusébio derramou lágrimas de emoção! Não era para menos!

Com tudo isso, tínhamos já alguma notícia para enviar ao boletim da Congregação, o "Bertoniano". Na Itália a expectativa era de grande sucesso para nossa expedição. A notícia de que já tínhamos aceitado e estávamos em Tibagi despertou grande entusiasmo, especialmente entre os jovens e os padres que olhavam o Brasil como seu futuro campo de trabalho.

Ainda não falávamos corretamente a língua portuguesa. Mostrávamos o suficiente para não fazer rir. Começamos, então, a preparar as viagens missionárias.

Fazíamos nove viagens por ano e cada uma durava um mês ou mais.
Foram organizadas para que um tivesse oportunidade de descansar, enquanto o outro saísse. Eram divididas segundo os pontos cardeais. Um mês antes da partida deviam-se mandar cartas aos chefes do lugar, marcando o dia da chegada do missionário. Estes eram encarregados de avisar o pessoal da redondeza para que todos se reunissem, no dia fixado, em determinado lugar. O povo do sertão precisava do calendário para receber o missionário, que normalmente se hospedava nas casas dos chefes do lugar. Isso era uma honra para eles. Davam o melhor de si na recepção ao missionário. O correio, quando chegava, chegava a cada oito dias em Tibagi. Era distribuído e endereçado muito mais raramente para o sertão.

Algum necessitado, com ordenado de 20.000 réis (cerca de 60 liras) por mês, cavalgando o próprio animal, vinha uma ou duas vezes por mês buscar a correspondência na central de Tibagi. Devagarzinho (pois o animal era seu), fumando cigarro de palha, parava em qualquer casa quando era tempo de chuva. Ouvia ou dava notícias, chegando com a sacola da correspondência (quando não a perdia pela estrada). Depois de gritar várias vezes “ó de casa”, e esperar um bom tempo, entregava cartas nas casas da cidade e vilas perdidas no meio do sertão. Às vezes acontecia que o coitado não podia voltar com a correspondência recebida porque o cavalo se esfalfara devido à viagem longa e ao calor! Era preciso esperar. Às vezes eram tantas as incumbências e favores que se lhe davam para comprar, levar ou comunicar, que perdia tempo e até dias inteiros. Muitas vezes a correspondência ficava em segundo lugar.

O carteiro Valêncio era um tipo especial! Homem bom e diligente. Saía-se bem falando um pouco de Cajubá e Caingangue. Fazia favores a todos, mas tinha uma égua diante da qual o cavalo de D. Quixote seria puro sangue! Mal se mantinha de pé! Quando entrava em Tibagi, depois de uma longa viagem de distribuição de cartas pelo sertão com a sacola na garupa, parecia desfalecer a cada passo. Valêncio olhava para todos os lados. Se visse uma criança brincando na rua, ainda que a duzentos metros de distância, gritava:
- Ô mal-ducado! Saia daí! Não vê minha égua? Sempre brincam no meio da rua estes meninos mal educados! Não havia perigo algum. Antes que a égua fizesse os duzentos ou cem metros o menino teria tido tempo de jantar!

Com tais carteiros, não se podia fiar muito na entrega a tempo das nossas cartas de aviso. Ficávamos atentos a alguém que chegasse a Tibagi para compras ou negócios, alguém do lugar para onde se ia dentro de um mês. Entregava-se, então, a ele a carta endereçada ao chefe do lugar, talvez para outros lugares, e se podia ter a certeza da entrega. Uma vez dado o aviso, não havia mais mudança de data. Era preciso chegar no dia estabelecido! Caso contrário seria um desespero.

O povo se reunia e vinha gente de 10, 15 e até mais quilômetros à pé, atravessando rio e mato, debaixo de sol ou de chuva! Mães com crianças no colo ou o pai à cavalo, trazendo um filho na frente e mulher na garupa, sem comida, por horas a fio. Não podia ser verdadeiro missionário quem faltasse com a palavra. Embora devesse atravessar rios cheios e cortar árvores que o vento derrubara no caminho, tivesse ou não comido e dormido, o missionário tinha que chegar a qualquer custo! Seria desculpado só em caso de morte. Posso garantir que sempre fomos fiéis a todos os avisos dados.

Pe. Alexandre mandou cartas de aviso no começo de junho para sua primeira viagem de Missão que seria em julho e deveria durar trinta e quatro dias.

Ir. Domingos começara a preparar os cavalos e Pe. Alexandre o necessário para a missa, batizados, casamentos, bênçãos. Recordo-me de que ele ficara preocupado por não saber cavalgar direito e se lembrava da viagem de Castro e Tibagi, na qual sofrera tanto que chegou a ficar com pequenas machucaduras.

E eu lhe dizia:
- As feridas foram uma lição! Não se renovarão mais! Fez calo e isto é ótimo para resistir a grandes cavalgadas!

Eu cavalgara muito mais que ele. Desde menino fiz muitas vezes o caminho de São Máximo aos Estigmas para ir à aula montando meu baio que deixava na cocheira. Eu fora instruído como cavalgar e passei-lhe meu aprendizado.


- Quer montar bem sem que nada lhe aconteça? Preste atenção. Antes de tudo, tenha bons e perfeitos arreios. Depois, observe se a barrigueira que segura a sela está bem apertada e firme. Para montar tome as rédeas e a crina juntas na mão esquerda, observando que não fique muito esticada; segure com a mão direita o cabeçote da sela; coloque o pé esquerdo no estribo e com impulso, levantando bem a perna direita, monte na sela. Quando estiver na sela os pés devem estar bem dentro e firmes no estribo; deve firmar as coxas e não os joelhos; olhe sempre a cabeça do cavalo; solte as rédeas e o cavalo andará. A qualquer movimento estranho do cavalo, preste atenção à sua cabeça: se levantar o corpo você deve jogar-se para frente; se o abaixar jogue-se para trás. Se o cavalo pular o corpo deve ser inclinado para frente para que depois do salto se encontre reto e perpendicular. Exercite logo tudo isso. Além disso, se os arreios não forem bons romper-se-ão ao primeiro esforço do animal. Se arrebentar uma rédea, ai, ai, ai, cavaleiro! Se a barrigueira não ficar bem apertada e firme permitirá que a sela caia ou escorregue para trás; se não segurar as rédeas junto com a crina o cavalo pode saltar antes que você suba na sela; se não suspender bem a perna direita quando montar poderá tropeçar na própria sela ou no animal e cair.
Pe. Alexandre ouvia tudo docilmente, pois ignorava estas técnicas!

Chegou finalmente o dia da partida para a primeira viagem de Missão. Gostaria que fosse eu; mas era justo que Pe. Alexandre começasse. Era o Superior!